A camioneta da carreira passava à hora certa, Canhoto o chauffer, apitava estridentemente para avisar os retardatários. Todo aperaltado, saía de casa a correr, ainda a tempo de tomar o meu lugar na camioneta. Vergada ao peso das malas e outros atavios, que se alojavam no tejadilho, a viatura partia rumo a Lisboa, fazendo o trajecto junto ao rio até à Torre da Marinha, enviezando depois para o Fogueteiro e retomando outra vez a rota do rio quando se passava pela Amora, freguesia do Concelho do Seixal e desembocava na estrada nacional, estreita, mal arruada e pejada de carroças carregadas de hortiças, que se destinavam ao Mercado da Ribeira. A viagem até Cacilhas era atribulada e mais atribulada seria se o barco que me levava a Lisboa, atravessando o Tejo, apanhasse uma daquelas marés vivas, de águas esverdeadas e bastante onduladas. Depois no Cais do Sodré apanhava o eléctrico para o Camões, descia a pé até ao Chiado, contornava o Grandella e chegava ao Rossio. Atravessava a praça, ia à Suíça beber um café e tomava um autocarro da Carris, todo verde, sem publicidades, de dois andares e do alto do primeiro contemplava a avenida da Liberdade, olhando o Palladium e o Éden pela esquerda, espreitando o Condes e o Odeón, pela direita, chegando ao Marquês, disfrutando do Parque Eduardo Sétimo, rumando Fontes Pereira de Melo acima até ao Saldanha, ponto final da minha viagem. Ali, imponentes, estavam o cinema e o teatro Monumental. Na frontaria, um enorme cartaz, anunciando os espectáculos. No meu bolso um bilhete de 50 escudos comprado religiosamente semanas antes, dentro da sala uma figura incontornável da canção francesa: Adamo. Agora, sentado em frente do meu computador, ouvindo "Tombe la neige" revivo a Lisboa de então.
Presente de Páscoa
Há 12 anos