terça-feira, 6 de novembro de 2007

UM DIA DIFERENTE



Quando era miúdo adorava ir à Praia das Maçâs passar férias. Não era apenas aquele riacho que serpenteava pelas areias formando pequenas enseadas e desaguando depois no mar; nem o homem das bolas de Berlim, gritadas areal fora; nem sequer o pinhal que fronteava a casa das minhas tias, pleno de pinhões e camarinhas que faziam as nossas delícias. Era sobretudo o quarto do meu primo Zeca, recheado de surpresas, que ele, muito mais velho que eu, fazia saltar das gavetas. Eram recordações da meninice dele, jogos, brinquedos, bonecos de todas as cores e feitios, que ele me oferecia e eu delirava. Hoje, sou, não um coleccionador, mas um juntador de coisas pensando que um dia mais tarde, filhos ou netos, encontrem numa gaveta, numa caixa ou num canto qualquer, alguma coisa que os encante. Com as obras que tenho feito em casa, o espaço para as colecções não sobra, nem sequer para o amontoado de coisas que vou juntando. Assim, tudo tem sido transferido para o atelier de pintura, em caixas, em malas, em sacos. Por acaso hoje fui a um desses sacos procurar um cabide e encontrei uma lata que em tempos deve ter servido para acondicionar rebuçados e qual não foi o meu espanto quando descobri que estava cheia de legos. Peças de várias engenhocas, peças de um tempo que o João Pedro, meu filho,viveu quando criança. Como me ia encontrar com a Matilde, minha neta, resolvi levar a lata para lhe mostar. À noite, antes do jantar, despejei ao conteúdo da lata no chão e foi com alguma emoção que vi o João e a Matilde a a desbravar as peças e a tentar encaixá-las. Da cena, apenas duas notas quero realçar, a primeira da Matilde, que virando-se para o tio lhe pergunta «tio João ofereces-me os legos, está bem ?» e do João que virando-se para mim, pediu «passa-me aí essa peça, que se bem me lembro tem um perno partido» . Passaram-se mais de vinte anos, a peça continua partida, o nosso imaginário continua vivo, a geração Matilde agradece. As minhas caixas continuam no atelier, cheias de coisas velhas, que um dia os filhos e netos desbravarão.

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